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A Arte de CROWLEY


“Ciência sem consciência

não passa de ruína da alma.”

François Rabelais in

“Gargantua e Patagruel”

(François Rabelais foi um escritor, padre e médico francês do Renascimento. Seu Livro “Gargantua e Patagruel”foi uma das fontes de inspiração de Aleister Crowley para desenvolver a Religião Thelêmica.)

Segundo a Igreja Católica existem quatro virtudes cardinais que polarizam todas as ou­tras virtudes humanas. O conceito teológico destas quatro virtudes foi derivado inicialmente do esquema de Platão e adaptado por Santo Ambrósio de Milão, Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino. Elas são perfeições habituais e estáveis da inteligência e da vontade humana, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam a nossa conduta segundo a razão e a fé.

As quatro virtudes cardeais são:

  • A Prudência. A razão e a medida para discernirmos as nossas escolhas.

  • A Justiça. A vontade de dar aos outros o que lhes é devido.

  • A Força. Aquilo que nos assegura a firmeza nas dificuldades.

  • A Temperança. A Moderação. O Equilíbrio.

Arte / Temperança

O Arcano de número XIV

Neste pequeno ensaio falaremos sobre a boa medida, sobre a Temperança que Aleister Crowley chamou de Arte em seu Tarot de Thoth.

A Arte possui o atributo zodiacal Jupiter (o planeta da expansão) em Sagitário (A Constelação do Arqueiro, da flecha que visa alcançar grandes distâncias).

Na cabala representa o caminho 25 da árvore da vida que liga Tiphareth (a beleza) a Yesod ( o fundamento). Letra Hebraica: A’ain que quer dizer: Olho.

Na mitologia romana representa Diana (a Deusa Ártemis para os gregos) a deusa caçadora que rege a lua enquanto seu irmão gêmeo Apolo rege o sol.

Nesta releitura de Crowley, uma vez que a Diana do arcano apresenta vários seios, podemos dizer que foi inspirada na estátua Diana de Ephesus (cidade greco-romana da antiguidade que atualmente faz parte da Turquia).

Diana de Ephesus

Este arcano XIV, como diz o próprio Aleister Crowley em seu livro de Thoth, é a consumação do arcano VI (Os Enamorados) quando os dois seres do outro arcano se fundem em um ser híbrido promovendo a sua comunhão no sentido mais profundo. O rei negro e a rainha branca do arcano VI aqui se mesclam em harmonia e equilíbrio de forças dando origem a este outro ser alquímico de duas cabeças que mistura o fogo e a água em seu caldeirão, juntando os opostos e promovendo a perfeita unidade do ser. Pode-se notar ainda que a águia branca e o leão vermelho do arcano VI aparecem no arcano XIV com suas cores dramaticamente invertidas intensificando essa mistura e a consumação desta união. Enquanto os amantes se dissolvem no arcano VI, eles coagulam no arcano XIV como o próprio Crowley explica.

Os Amantes

O Arcano de número VI

Pode-se ainda notar a representação do ovo órfico nos dois arcanos. O ovo órfico remete ao Ovo de Ouro de Brahma (Deus Indú da criação) que simboliza o universo. O ovo órfico também remete aos mistérios de Dioniso no sentido de transformação (uma vez que Dioniso antes de se tornar imortal, morreu como Zagreu e foi guardado na coxa de Zeus enquanto se transmutava no deus olímpico). E por último o ovo órfico remete a Orfeu e sua descida ao reino de Hades para resgatar Eurídice. Brahma criando um universo que transmuta, Dioniso se transformado em deus imortal e Orfeu descendo aos infernos são referências a processos alquímicos e à depuração. E a Arte de Crowley, representada pelo arcano XIV, acima de tudo faz referência a todos estes processos alquímicos.

Observando o axioma acima da cabeça da Temperança temos:

"Visita Interiorem Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem". Sua tradução: “Visita o Centro da Terra, Retificando-te, encontrarás a Pedra Filosofal”. Em outras palavras: “Visita o Teu Interior, Purificando-te, Encontrás o Teu Eu Oculto, ou, a essência da tua alma humana”. Podemos ainda trocar este axioma pela inscrição do Oráculo de Delfos que quer dizer exatamente a mesma coisa em outras palavras: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”. É através do auto conhecimento e das mudanças alquímicas interiores que conseguimos transmutar o chumbo em ouro e transformar as coisas e as pessoas ao nosso redor.

Os dois axiomas que seguem obedecem exatamente este mesmo princípio:

INRI - Igni natura renovatur integra (A natureza é completamente renovada pelo fogo).

INRI - Iēsus Nazarēnus, Rēx Iūdaeōrum ( Jesus de Nazaré Rei dos Judeus).

A natureza se transmutando e Jesus ressuscitando são dois exemplos de processos alquímicos regidos pelo arcano XIV. Pois no universo e no ciclo da vida tudo se transmuta, tudo tem um começo, um meio e um fim. E neste caso o mediador ( a Arte / a Temperança) é que equilibra as forças do princípio e do fim. Assim vemos que tudo tem uma energia criadora, que depois se organiza e logo em seguida se dissemina. E aqui temos vários exemplos de como essa trindade foi representada em várias culturas remetendo a este conceito de criação, organização e disseminação. O primeiro deles e o mais conhecido é: PAI (a energia criadora) FILHO (a energia organizadora / a que estabelece a ordem do pai) ESPIRITO SANTO (a energia disseminadora que por um lado termina e por outro abre-se para algo ainda maior). Na cultura indiana temos esse mesmo conceito de representação nas figuras de BRAHMA, VISHNU e SHIVA, as três faces de Deus representando as três energias do ciclo da vida. Brahma sendo a energia criadora, Vishnu a energia organizadora e Shiva a energia disseminadora.. No Egito OSIRIS aparece como a energia criadora, ISIS, a irmã, a energia mediadora e HÓRUS, o filho, a energia transformada de Osiris ressuscitado. Na própria religião Thelema desenvolvida por Crowley vemos um similar de Osiris, Isis e Hórus nas figuras de NUIT, HADIT e HA-HOOR-KHUIT. Essas três figuras inclusive aparecem no Aeon, arcano XX, que corresponde ao Julgamento e ao início da Nova Era. Na astrologia também podemos observar a representação desta energia através dos conceitos de CARDINAL, FIXO e MUTÁVEL. O zodíaco possui doze signos divididos em doze meses. Temos quatro estações do ano e portanto três signos para cada estação. Aqui o ciclo da vida é representado por uma estação que nasce no signo cardinal, estabelece-se no signo fixo, e dissemina-se no signo mutável. Então temos a primavera nascendo em áries (cardinal), estabelecendo-se em touro (fixo) e disseminando-se em gêmeos (mutável). O verão nascendo em cancer (cardinal), estabelecendo-se em leão (fixo) e disseminando-se em virgem (mutável). O outono nascendo em libra (cardinal), estabelecendo-se em escorpião (fixo) e disseminando-se em sagitário (mutável). E o inverno nascendo em capricórnio (cardinal), estabelecendo-se em aquário (fixo) e disseminando-se em peixes (mutável). Assim as estações do ano e os signos, também carregam em si essa energia cíclica da vida. Outro exemplo dessa energia encontra-se na própria alquimia sendo representada por SAL, MERCÚRIO e ÁCIDO SULFÚRICO, pois esses três elementos carregam em si, nessa ordem, a mesma energia do cíclica das outras correspondências já citadas. Mediando entre o sal (passado concreto que representa a memória e o imutável) e o ácido sulfúrico (futuro abstrato que representa as aspirações, intensões e metas), o mercúrio representa as variações do momento presente. O mercúrio no centro também representa a habilidade de mudança das orientações internas e externas da existência. Ainda podemos falar de CLOTO, LÁQUESIS e ÁRTROPOS da mitologia grega. Essas três senhoras sábias são conhecidas como “As Moiras” ou “As Parcas”. Elas são as tecelãs do fio da vida e do destino. Cloto tece o fio, Láquesis dá os nós, direciona e estabelece a ordem dos fatos e Ártropos corta o fio. Estas mesmas senhoras são as Norns da mitologia nórdica: VERDANDI, SKULD e URDR. Ainda na mitologia grega temos CORI, PERSEFONE e HÉCATE, as três faces da senhora do inferno, esposa de Hades e que também corresponde às três fases da lua que podem ser vistas. Cori (a jovem, a lua crescente), Perséfone (a mulher, a lua cheia) e Hécate (a velha, a lua minguante). E a lua nova, a que não vemos, está ligada ao que acontece depois que encerra o ciclo. A lua nova está ligada à ascenção que seria o V.I.T.R.I.OL., o quinto elemento, o éter, o espírito. E no que diz respeito ao ser humano, a energia divina da trindade e do ciclo vital remete-se ao AMOR, à SABEDORIA e a VERDADE. Energia que nasce no amor, estabelece-se e põe ordem com a sabedoria e fecha o ciclo com a verdade. Os exemplos da energia de trindade são infinitos em várias culturas. E o que cabe neste ensaio é falar sobre a Arte, a Temperança, a mediadora destas transmutações alquímicas representada pelo arcano XIV do tarot.

Digo que não foi sem um toque de extrema perspicácia que Aleister Crowley resolveu chamar a sua Temperança de “Arte”.

Desde os primórdios de sua descoberta, a Arte tem proporcionado o mesmo papel transformador nas pessoas que a alquimia proporciona aos elementos. Na Poética de Aristóteles a tragédia grega, por exemplo, é explicada como o elemento mediador que provoca terror e piedade a fim de se alcançar a expurgação dos sentimentos. Mais alquimia que isso impossível!

Máscara da Tragédia Grega

A “Arte” é o “A’ain” hebraico, o olho que tudo vê, o espelho que faz as pessoas se encararem de frente para conhecerem o Universo e os Deuses. A Arte é a magia, é a expansão de Júpiter, é a flecha do arqueiro de Sagitário que alcança distâncias inimagináveis. A Arte é o caminho cabalistico que liga a beleza da obra ao seu fundamento e significado. A Arte é essa alquimia transmutadora, reveladora, expurgadora; é a Temperança mediando entre o princípio e o final das coisas. A Arte é a pedra filosofal, é descida de Orfeu aos infernos por sua causa celestial.

E uma vez vivenciada essa jornada, transmutado, trancendido e encerrado o ciclo, alcançaremos a última etapa. A etapa da lua que não vemos a olho nú. Uma vez diante da lua nova, do éter e do espírito, poderemos enfim nos despedir.

Encerro com o monólogo final do personagem Próspero da peça “A Tempestade” de William Shakespeare. Este monólogo é a despedida de Próspero da vida e da Arte após suas profundas transmutações e compreensão de todas as coisas.

Meu poder já não existe, Só a minha força persiste É débil, mas é verdade Que eu fico à vossa vontade, Ou será Nápoles. - Não, Tenho o ducado na mão, Perdoei de alma serena, Mereço escapar à pena. Libertai-me, pois, da ilha, Com vossas mãos-maravilha! Vosso sopro às minhas velas vem Ou meu sonho se retem, De agradar-vos. E hora em falta Do feitiço que me exalta, O meu fim é o desalento. Só de orações me sustento: Que elas assaltem, bem forte, Os muros da minha sorte. Perdão que haveis de pedir, Dai-me igual. Deixai-me ir.

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