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Lygia Fagundes Telles e Os Caminhos do Tarot

“O mais importante é indizível”

Lygia Fagundes Telles explicando a criação literária em uma palestra na FNAC de São Paulo

O Tarot é um jogo de baralho que possui vinte e duas cartas que correspondem aos Arcanos Maiores (os grandes mistérios) e mais cinquenta e seis cartas que correspondem aos Arcanos Menores (os pequenos mistérios), dando um total de setenta e oito cartas. O jogo de Tarot é uma miniatura do Universo, assim como também é o homem. À parte seu caráter divinatório, o jogo de Tarot representa, antes, um caminho evolutivo através de símbolos.

Lygia Fagundes Telles, a grande dama da literatura brasileira, diz, no prefácio de “Meus Contos Preferidos”, que “O ser humano é inexplicável e impotente diante do mistério da morte e do amor”. Entretanto, ela criou em sua obra uma gama tão extensa e diversificada de personagens que explicam a vida, o amor, a morte e todos os mistérios do ser humano com uma profundidade e uma verdade que poucos autores conseguiram alcançar. Ela diz o indizível e explica o inexplicável. Portanto sua obra pode também ser considerada um caminho evolutivo.

O entendimento é uma das etapas finais do processo em direção à luz e ler Lygia é compreender todos esses mistérios que rondam a vida das pessoas. Desta maneira, apresento, através dos Arcanos Maiores, a correspondência entre essas cartas do Tarot e os personagens de Lygia. Obviamente esses personagens são complexos e ao longo de seu desenvolvimento na trama podem representar várias energias distintas ao mesmo tempo.

O critério que usei para escolher qual personagem ou qual situação representa melhor cada energia foi a que mais claramente podemos identificar, a que sintetiza a personagem ou a situação de um modo geral. Assim, explicarei a energia de personagens e situações por um aspecto, aquele que mais chama a atenção no conjunto, mas deixando claro que tanto os personagens quanto as situações da obra de Lygia possuem uma tessitura extremamente desenvolvida e sua composição é uma mescla de várias energias que se alternam.

Começarei essa apresentação com os Arcanos Maiores. O tarot usado para esta análise é o Rider Waite Smith, onde há inversão de ordem entre as cartas d’A Força e d’A Justiça.

OS ARCANOS MAIORES

0. O Louco – Confiança, busca, ingenuidade.

Leontina. A carta do Louco é a carta de número zero e primeira carta do caminho. Geralmente é representada por um jovem à beira de um abismo. Esta é uma carta de energia jovial, de confiança, de ingenuidade e de quem tem muito ainda para aprender na vida. No conto “A Confissão de Leontina”, a personagem principal tem essa mesma energia. A ingenuidade de não perceber que o primo é ruim e que derrubou sua irmãzinha de propósito, provocando nela sérios danos cerebrais. A confiança, após a morte da mãe, de entregar a casa e tudo que ela tem para esse mesmo primo em troca da promessa de que ele posteriormente cuidará dela. A ingenuidade de achar que o velho que lhe oferece ajuda tem mesmo boas intenções. A ingenuidade ainda maior de ir à loja devolver o vestido comprado por este mesmo velho após tê-lo assassinado acidentalmente.

A carta do Louco é o primeiro passo daquele que ainda não vê a maldade no mundo e não sabe se defender. A lição desta carta não é aprender a maldade, mas sim a observação: ir devagar conhecendo o terreno antes de pisar com tudo. Leontina não observa, não percebe e se entrega sempre sem nunca desconfiar de nada. A ela resta o aprendizado da maneira mais difícil antes de fechar o ciclo. E que longa será esta jornada!

1. O Mago – Energia, alquimia, transmutação, maturidade.

Raul. O Mago é a carta das transformações alquímicas. É a carta do feiticeiro, daquele que é capaz de transformar pessoas e situações. Ligado diretamente à carta da Força, o Mago geralmente vem representado por um mágico diante de uma mesa segurando uma varinha que representa o naipe de Paus (fogo/espírito). Na mesa há uma taça que representa o naipe de Copas (água/emoção), uma moeda que representa o naipe de Ouros (terra/físico) e uma espada representando o naipe de Espadas (ar/razão). O Mago domina os quatro elementos e interage com todas as forças universais.

No romance “As Horas Nuas”, Raul é o gato que sabe tudo que está se passando, não só com sua dona Rosa Ambrósio, numa mescla de pensamentos, mas que também percebe e compreende tudo à sua volta. É um vulto que está sempre observando, pequeno demais para ser gente – é o gato, o mago. Desde a gatinha Filó que compreende tão bem a alma de Gina, no conto “Uma Branca Sombra Pálida”, até o gatinho que vem com uma medalha no pescoço, no conto “A Medalha” para culminar uma situação, na obra de Lygia o gato exerce um papel fundamental, aparecendo em diversas histórias como um feiticeiro ou como a razão de fora que compreende os motivos internos de todos os outros personagens.

A lição desta carta (e de todos os gatos que permeiam a obra da autora) é a alquimia, a transmutação e o entendimento da alma em seu sentido mais profundo.

2. A Papisa – Intuição.

A mãe de Tomás. A carta da Papisa é uma carta que possui energia feminina intuitiva e geralmente sua figura é a representação de uma sacerdotisa sentada em um trono.

No conto “As Pérolas”, a mãe de Tomás é a grande representante desta energia. Ela é uma mulherzinha raquítica e molambenta que nada possui na vida a não ser olhos poderosos e desvendadores (e foi dela que Tomás herdou o dom de pressentir). A Papisa é a carta da sabedoria feminina, da mulher que entende os processos da vida e sabe que há coisas que, ainda que possam ser pressentidas, não podem ser impedidas. E a mãe de Tomás diz ao marido: “E o que eu podia fazer senão esperar?”. Não interferir no que está escrito e no que não pode ser alterado é a grande lição de sabedoria da Papisa e também a grande lição desta carta e desta personagem.

3. A Imperatriz – Criatividade, fertilidade

Patrícia. Das figuras femininas, a Imperatriz é a mulher mais forte do Tarot. Geralmente esta energia é representada por uma mulher grávida sentada em seu trono, sendo a gravidez, aqui, um símbolo da fertilidade e da criatividade. No romance “Verão no Aquário”, Patrícia é a mãe da narradora da história. Patrícia é uma escritora calada, uma esfinge. Uma mulher forte, de personalidade fria e decidida, que possui uma relação muito turbulenta com sua filha Raíza e uma amizade não explicada com o jovem padre André. Parte desta amizade lhe serve de alento para os problemas que tem com a filha e a outra parte é a causa de todos esses problemas. Seu ponto de vista é narrado pelo olhar da filha com pitadas de uma ou outra opinião a seu respeito dos personagens que estão em segundo plano. Somente na conclusão da história nos é dado conhecer o que ela realmente pensa. E o ponto de vista dela é a chave que fecha o romance. A lição desta carta e desta personagem é a força da conquista através da luta, a arte de se calar para que os outros possam chegar às suas próprias conclusões e conseguirem enxergar a Imperatriz como ela é de fato.

4. O Imperador – Conquistas

A figura do Pai. De Raíza, de Gina e de Cordélia. Enquanto o rei herda o seu reinado, o imperador conquista o seu império através da guerra. Sua energia é representada pelo Imperador, com uma enorme coroa na cabeça e um cetro nas mãos, sentado em seu trono da vitória. Nos romances “Verão no Aquário” e “As Horas Nuas”, as duas jovens, Raíza e Cordélia, nos são apresentadas adultas e seus pais estão mortos. Nestes dois romances as duas jovens ainda tem mãe: Patrícia e Rosa Ambrósio, respectivamente, que sempre perdem a guerra de educar as filhas para a figura paterna, pois um mito não se derruba. E, sobre isto, Rosa Ambrósio faz a brilhante colocação: “E o pai pedindo que eu não interfira, ela é livre, deixa que faça sua escolha. Deixei. Então, na surdina, ele foi saindo de cena, ah, sim, em certas ocasiões fica mais cômodo morrer.” Estas figuras paternas fazem ponte também com o pai de Gina do conto “Uma Branca Sombra Pálida”. A lição destas figuras míticas paternas e desta carta é a conquista e a vitória, sempre.

5. O Sumo Sacerdote / Hierofante – Tradições, resgates.

O Espartilho. O sumo sacerdote ou hierofante nos apresenta uma energia de comportamentos sociais e familiares que são justos como um espartilho. No conto O Espartilho, Ana Luísa vive o dilema de conviver com sua avó extremamente rígida que vive presa dentro do espartilho e dessas tradições. A avó, por outro lado, vê na neta uma jovem obscura, sem ambição e incapaz de seguir um rumo independente destes valores impostos pela sociedade e lutar por uma vida de maneira mais moderna e independente. Este conto põe em xeque a tradição à qual a mulher deveria se ajustar na figura desta avó que já está acostumada a apertar-se dentro destes valores e acha que tudo deve seguir desta maneira. Este é mais um conto de Lygia que confronta os velhos e os novos valores e a lição desta história e desta carta é aprender as tradições para poder rompê-las e resgatar depois apenas os pontos que nos são importantes.

Neste conto "O Espartilho" a avó é rígida mas espera da neta uma libertação destes moldes impostos pela sociedade. Sempre diz à menina: "Você tem que lutar!" É um conto bastante profundo e sugere que através da neta a avó quer libertar-se a si mesma das imposições sociais.

6. Os Amantes – Atração, alianças.

Lavínia e Tomás. A carta dos amantes possui uma energia triangular, representada por um casal junto a um anjo observador. No conto “As Pérolas”, Lavínia e Tomás vivem um amor meio esgarçado, mas ainda amor, que está prestes a ruir diante do encontro de Lavínia com Roberto (o anjo que pode ser caído ou não), numa reunião à qual Tomás não comparecerá por motivos de saúde. Todo narrado no futuro, este conto mostra a fragilidade de Tomás diante da doença grave, da possibilidade de sua morte rápida e do vislumbre de sua esposa já nos braços do outro. Uma vez que Tomás, ao fim da história, entrega a Lavínia o colar de pérolas – que é o eixo central da composição deste quadro que seduzirá Roberto na reunião – vemos que a lição, tanto desta carta quanto deste conto, é a abnegação em prol do amor verdadeiro (esta carta faz paralelo ao Ás e ao Dois de Copas).

7. A Carruagem – Determinação, direção.

Doutor Werebe. A Carruagem é a carta dos cursos e das diretrizes e esta energia geralmente é representada por uma carruagem puxada por dois cavalos. No conto “W M”, o narrador, Wlado, é ajudado pelo Doutor Werebe (seu psiquiatra e sua carruagem) a fazer a descida ao seu subconsciente. “O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo e para ajudá-la preciso eu também descer aos infernos.” Enquanto o Doutor Werebe dá a direção, Wlado procrastina a aceitação de que sua irmã Wanda está morta há muitos anos e que Wing, sua namorada chinesa, foi assassinada por ele próprio. A lição desta história e desta carta é saber administrar os passos, olhar o caminho como ele de fato é, e ter coragem para continuar seguindo a estrada da vida. Se a gente para, a “carruagem” nos atropela.

8. A Força – Força.

Romana e Tigrela. A carta da Força é uma carta que ensina a domar instintos e situações difíceis. Geralmente vem representada por uma jovem acariciando um leão. Neste caso, um tigre. “Tigrela”, um conto muito peculiar da autora, pode ser analisado em três níveis: No primeiro, que oferece uma perspectiva dentro do gênero “maravilhoso fantástico”, vemos uma jovem que se transforma em tigresa e sua relação com sua dona, numa alternância de papéis, ora como caça, ora como caçadora. No segundo nível, Tigrela seria um avatar em forma de tigre que Romana usa para esconder de sua amiga as relações íntimas que possui com a jovem que mora com ela. E no terceiro nível – o mais profundo e mais triste – podemos dizer que Tigrela não existe e que este é apenas mais um conto de Lygia falando sobre a solidão. De uma maneira ou de outra, a lição desta carta e deste conto é desenvolver a nossa força pessoal diante de qualquer atribulação “selvagem” e a capacidade de transmutar o chumbo em ouro, ou o instinto de uma tigresa num humor dócil de uma mulher. Esta carta faz paralelo à carta do Mago e aos gatos da obra de Lygia do ponto de vista da transformação.

9. O Eremita – Introspecção, segredos.

Lucinda e Aristeu. A carta do Eremita geralmente é representada por um velho segurando uma lamparina na porta de uma caverna. Esta é uma carta de segredos, ainda que a luz esteja em nossas mãos. Por um momento ele hesita se quer ou não entrar na caverna para ver o que tem lá dentro. Aqui aprendemos a respeitar limites. Há coisas que é melhor não saber, ou que é melhor esperar o momento certo. Lucinda e Aristeu são amigos do narrador no conto “Olho de Vidro”, um texto muito interessante de começo de carreira, que está na coletânea de contos “Cacto Vermelho”, o terceiro livro lançado pela autora. O narrador desta história é um detetive pago por um velho para seguir sua jovem esposa, que se parece com Laura, a parceira do narrador que já o traiu. O contraponto é o casal amigo que olha Laura com desdém. Lucinda e Aristeu mantêm um relacionamento dentro da caverna do Eremita e o que se passa lá dentro não se sabe, enquanto que Laura é a lamparina que nos mostra a luz e a que veio (“Pelo menos é franca, diz o que pensa, não fica se escondendo como uma lagartixa”). Aqui a lição é a escolha. A luz da lamparina (Laura e o narrador) ou a escuridão da caverna (Lucinda e Aristeu). Até onde devemos ou queremos saber sobre as pessoas que estão próximas a nós.

10. A Roda da Fortuna – Ciclos, altos e baixos, instabilidade.

Ciranda de Pedra. A Roda da Fortuna gira, o que está em cima desce e o que está embaixo sobe. Esta carta é representada obviamente por uma roda. No romance “Ciranda de Pedra” vemos uma ciranda de cinco anões de pedra que representam: Bruna, Otávia, Letícia, Afonso e Conrado. Cinco crianças ricas que fascinam a infância de Virgínia (a meia irmã de Bruna e Otávia, criada pela mãe e pelo amante em condições modestas). Virgínia passa os finais de semana na casa do pai de criação, junto de suas irmãs sem saber que o pai não é seu pai verdadeiro. Quando a mãe morre e o amante se mata, a empregada conta a verdade à Virgínia, que se isola num colégio interno.

Na segunda parte do livro, Virgínia, já adulta, retorna à casa de seu pai de criação e reencontra os cinco que tanto a fascinaram na infância. No giro da roda da sorte, o jogo se inverte e ela então é que passa a fascinar a todos do grupo. E neste giro da roda não só o jogo de sedução se inverte, como também Virgínia passa a olhar estes cinco com outros olhos e já não os acha mais tão grande coisa assim. Este grande romance de Lygia é, para a crítica literária, o marco da maturidade da escritora.

11. A Justiça – Verdade, revelações.

A tapeçaria. “Olhos vedados. Na mão esquerda a balança e na esquerda a espada. Ou a balança estava na mão esquerda? Os detalhes.” Com esta descrição, feita na página 180 do romance “As Horas Nuas”, a autora descreve a representação desta energia implacável. A justiça reveladora pondera com a balança e ataca com a espada. No conto “A Caçada”, o narrador para todos os dias diante da tapeçaria de uma loja, atraído por lembranças de seu subconsciente. Nesta tapeçaria antiquíssima, que não pode ser vendida porque irá se desfazer se for solta da parede onde está, o narrador insiste em saber mais do que deveria. A tapeçaria mostra uma caçada e o narrador força sua memória todos os dias para se lembrar de que ele foi o caçador desta cena. A insistência do personagem desvela o segredo e no fim da história os fios da tapeçaria invadem os fios narrativos do conto. Enveredando para o gênero “maravilhoso fantástico”, a tapeçaria toma conta da história e, com energia inexorável e inflexível, revela ao narrador que, por alguma razão justa, ele era a caça e não o caçador que ele queria ser.

12. O Enforcado – Suspensão, novas perspectivas.

Laura. A carta do Enforcado é representada por um jovem pendurado de cabeça para baixo por um dos pés. Essa energia de inversão ao olhar para a realidade pode ser notada na personagem de Laura no romance “Ciranda de Pedra”.

Mãe de duas jovens, Bruna e Otávia, de seu casamento com o rico Natércio, Laura também é mãe de Virgínia, filha de seu amante Daniel. Numa época de repressão social intensa em que era muito difícil para a mulher assumir seus desejos e escolhas, Laura, ao deixar o marido e assumir Daniel, acaba pouco a pouco enlouquecendo. Assim como o enforcado que vê a realidade de ponta cabeça, Laura enxerga tudo através de um espelho quebrado e devagar vai se desligando, tanto de seus afetos, quanto de tudo mais à sua volta. A lição de Laura e do Enforcado é o olhar sob nova perspectiva, pois, ainda que tudo ao redor esteja invertido ou espatifado, o sopro lá dentro continua perfeito como o espelho antes de cair no chão.

13. A Morte – Transformação, grandes mudanças.

Ana Clara. A carta da Morte é a carta das transmutações, daquilo que é inevitável e drástico. Geralmente ela é representada por um esqueleto. Ana Clara ou Ana Turva, no romance “As Meninas” é uma jovem linda e cheia de sonhos que, por seu jeito de ser, ao mesmo tempo em que provoca raiva, encanta as duas amigas que moram com ela no colégio interno.

Contando mentiras para que ela mesma possa acreditar que sua vida é melhor do que de fato é, Ana Clara se envolve com bebida, drogas e acaba falecendo antes mesmo de realizar qualquer um de seus sonhos. Em várias palestras, Lygia confessou que por muito tempo sentiu a morte desta personagem e que sonhou com ela, várias vezes, pedindo um retorno. “Ela era tão jovem e ainda tinha tanto a dizer.” A carta da morte nos ensina que a vida é cíclica, mas tudo que acaba pode renascer de outra maneira. Assim podemos notar que esta linda jovem de fato não morreu totalmente. Um pouco da Ana Clara renasceu em Rosa Ambrósio e Luisiana. Duas personagens mais velhas de obras posteriores, mas com o mesmo modo de pensar e de se jogar de cabeça nesta paixão pela vida.

14. A Temperança – Paciência.

Ananta Medrado. A carta da Temperança é a carta que nos ensina a manter a calma. Sua energia é de fluidez, de resignação às importunações e ela é representada por um anjo que despeja água de um jarro para outro, infinitamente. Ananta Medrado é a psicanalista de Rosa Ambrósio no romance “As Horas Nuas”. Tranquila e perseverante, com uma paciência sem limites, ela ouve Rosa Ambrósio por quase todo o romance e, em determinado momento da história, desaparece sem explicação, deixando sua paciente livre para poder crescer e, sozinha, alcançar a compreensão de si mesma: “Se ela não tivesse sumido eu estaria estendida naquele divã ou em algum outro falando em vão em vão em vão – não é extraordinário? Posso andar sem muleta, ô meu pai!”. Pode-se ainda fazer uma ponte do desaparecimento de Ananta à morte de André em “Verão no Aquário” e ao vulto de Conrado se apagando no pôr do sol em “Ciranda de Pedra”, pois as três protagonistas, Rosa Ambrósio, Raíza e Virgínia (que precisavam destes três apoios: Ananta, André e Conrado), na verdade são fortes e podem caminhar sozinhas.

15. O Diabo – Trapaça, apego, desejos profundos.

Os Ratos. A energia desta carta representa a afeição num sentido possessivo. Também o logro e as tramoias estão associados a esta energia. O Diabo é representado pelo anjo caído literalmente. No conto “Seminário dos Ratos”, o chefe de relações-públicas está em conferência quando o cozinheiro vem adverti-lo de que ratos invadiram a cozinha e comeram todo o jantar, além dos fios dos carros e dos telefones. Numa tentativa vã, o chefe quer convencer o cozinheiro a improvisar um jantar, mas este está apavorado e foge junto com todos os outros. Quando se vê só, os ratos atacam o gabinete e ele já não tem tempo de fugir. Corre, então, para a cozinha e se esconde na geladeira. Quando não ouve mais nada, ele foge da casa e, ao olhar para trás, vê que o casarão está iluminado como se os ratos estivessem em reunião. Fazendo uma ponte ao conto “As Formigas”, que também se organizam, mas para outros fins, os ratos deste conto representam a fome, o desejo profundo da posse a qualquer custo e pode ser visto como uma grande crítica à política brasileira e aos seus ratos famintos.

16. A Torre – Disseminação. Fim de ciclo. Morte.

Raquel. A carta da Torre é a do abatimento, da destruição. A energia desta carta é representada pela Torre de Babel vindo abaixo. Raquel, no conto “Venha Ver o Pôr do Sol”, é ludibriada por seu ex-namorado Ricardo que, através de uma história envolvente, a leva para um cemitério abandonado e a prende em uma catacumba. Raquel está tão envolvida pela vida luxuosa que seu namorado atual oferece, que o “brilho dessa purpurina” lhe ofusca a visão de tal maneira que ela não consegue ler os sinais de perigo enquanto, obediente e sem resistência, acompanha o ex-namorado para o seu cadafalso e o seu fim.

A lição desta carta e deste conto é a destruição e o fortalecimento. Dos escombros, uma Fênix pode nascer.

17. A Estrela – Iluminação, boa sorte, cura.

A Estrela de Papel Prateado. A carta da Estrela representa a energia da boa sorte. No conto “Dezembro no Bairro”, temos o personagem Maneco, um moleque pobre e doente, traído pelos amigos (que zombam de seu pai que trabalha como papai-noel), mas que, mesmo assim, corta as estrelas prateadas para o presépio que os amigos querem fazer. Maneco falece no final do conto e, em meio às lágrimas, tenta esconder a estrela prateada. Porém, seus amigos percebem e, aqui, a energia da cura acontece depois que o conto acaba. O leitor que conhecer Maneco nunca o esquecerá. Do mesmo modo, acredito que os garotos que viram a estrela sofreram uma transformação e naquela noite amadureceram. Só Maneco sabia cortar as estrelas. E seus amigos, no momento de sua morte, receberam a sua iluminação.

18. A Lua – Jornada, oscilações.

Lua Crescente em Amsterdã. A Lua representa as oscilações e os equívocos que cometemos quando a situação não se mostra cheia e seu outro lado está oculto. No conto “Lua Crescente em Amsterdã” temos um jovem casal, ela com energia de borboleta e ele de passarinho, passeando em Amsterdã numa noite de lua crescente. Através de um conto poético e efêmero que pode se desfazer numa pirueta, esta história e esta carta ensinam que não devemos chegar a conclusões precipitadas, pois sempre haverá o ponto de vista do outro, o lado oculto da lua que deve ser considerado.

19. O Sol – Luz, esplendor.

Conrado e André, o vulto e o olhar dourado que se apagam. A energia do Sol é de iluminação e esta carta é representada pela luz do sol. Conrado, no romance “Ciranda de Pedra”, é o sol da vida de Virgínia, enquanto que André, no romance “Verão no Aquário”, é o sol da vida de Raíza.

Tanto Virgínia quanto Raíza são duas jovens pela metade, acreditando que Conrado e André são a sua outra metade. Entretanto, quando Virgínia descobre que Conrado é impotente e decide partir para uma longa viagem, ela se despede dele observando seu vulto ao longe sendo apagado pelo pôr do sol. Do mesmo modo, o olhar dourado de André apaga-se com a sua morte. A lição desta carta e destas personagens é de iluminação, pois quando o sol de Conrado e de André se apaga, tanto Virgínia quanto Raíza encontram suas duas outras metades nelas mesmas e acendem a sua luz interior.

20. O Julgamento – Avaliação, prestação de contas.

Marina. A carta do Julgamento está ligada à energia do juízo final e é representada por dois anjos tocando trombetas num cemitério, para acordar os mortos. Neste arcano, tudo que vem à tona é cobrado. No conto “A Sauna”, Marina é a esposa do narrador que contou demais sobre a sua juventude e sobre a mulher que ele amou. “Eu não fazia ideia de que fosse tão sagaz assim. E que tivesse essa memória, acho que falei demais, se me casasse de novo só abriria a boca para pedir o saleiro.” Diante das confissões que o narrador fez ao longo de sua vida, a esposa cobra, faz perguntas afirmativas e quer todos os detalhes. A lição desta carta e desta personagem é enfrentar as ações sem rodeios, ter coragem de assumir os “erros” e estar pronto para pagar por eles.

21. O Mundo – Culminação, fechamentos.

A Bolha de Sabão. As bolas de sabão. Película e oco. Bolas de sabão com mil olhos mas que eram cegas. No conto Bolas de Sabão, a escritora conta que A Estrutura da Bolha de Sabão, foi de todos o conto mais difícil e o que mais a fez sofrer. A carta do mundo geralmente vem representada pelo desenho do planeta Terra. Uma bola de sabão... E para Lygia, a representação do amor... Neste conto A Estrutura da Bolha de Sabão a narradora ama um físico que estuda a estrutura da bolha de sabão, do qual se separou há anos e que hoje está casado. A esposa naturalmente sente ciúmes desta amizade que ela não alcança a profundidade. Porém, no momento que o físico adoece e a narradora vai visitá-lo a esposa os deixam a sós. Aqui temos a energia de culminação e fechamento da carta do mundo muito bem representada. Num ato de extremo amor e solidaridade, a esposa permite a despedida do casal. Aqui fechamos o ciclo e ela compreende o que faltava. “Agora ela sabia que ele iria morrer.”

O conto "Bolas de Sabão" encontra-se no livro "Conspiração de Nuvens" que, junto com os livros "Invenção e Memória" e "Durante aquele estranho chá", fazem parte de uma sui generis auto biografica que é narrada em contos distribuídos nestes 3 livros.

Estes contos são costuras de lembranças, não possuem ordem cronológica e nem sempre retratam o passado da autora literalmente. Ela conta que essas memórias são parte invenção e parte lembranças, algumas como foram mesmo, outras como ela gostaria que tivessem sido. No conto "Bolas de Sabão" ela narra um encontro com seus leitores e explica um pouco seu processo de criação literária. Num determinado momento confessa ao seus leitores que o seu conto mais difícil de escrever foi "A Estrutura da Bolha de Sabão" no qual este físico a beira da morte tem um último encontro com sua amante com a permissão da esposa.

Com este ensaio comparativo entre os arcanos maiores do tarot e a obra de Lygia Fagundes Telles, gostaria de salientar a ponte deste sistema de jogo, da obra de Lygia e de várias outras obras literárias para o autoconhecimento. Ainda que isto seja uma busca solitária, um caminho que devemos percorrer silenciosamente, o tarot e a obra literária podem – simbolicamente – nos guiar para nossa própria voz interior e, posteriormente, para a voz coletiva. O autoconhecimento é o primeiro passo. Como dizem os alquimistas “Viaja ao centro da Terra, retificando-te, e encontrarás a pedra filosofal.” No derradeiro instante, o verdadeiro encontro é com a gente mesmo. Por isso, devemos olhar para a vida como se ela fosse um quadro surrealista: ainda que às vezes as coisas nos pareçam desordenadas e sem muita lógica, a direção está lá e necessita apenas um olhar mais profundo. E quando alcançamos a essência dessa observação e o cerne dessa compreensão, tudo fica claro e passa a fazer sentido.

Os Arcanos Menores correspondem exatamente ao jogo de baralho comum, possuindo as cartas de Ás a Rei em quatro naipes: Paus, Copas, Ouros e Espadas. Assim sendo, o que diferencia o Tarot de um jogo de baralho comum são as suas vinte e duas cartas a mais, os Arcanos Maiores. Em relação ao baralho moderno, com apenas três figuras, o tarot traz o Valete, representado em alguns tarots pelo Pajem e, em outros, pela Princesa.

Tanto os Arcanos Maiores como os Arcanos Menores estão ligados a determinadas energias, possuindo cada uma dessas cartas um significado específico. Cada um dos naipes nos apresenta uma iluminação particular, um aprendizado energético. Algumas destas lições são de luz, enquanto outras são de sombras, pois neste nosso mundo impera a dualidade e a polaridade. Além disso, a luz tem seu ponto negativo no deslumbramento, enquanto a sombra tem seu ponto positivo no fortalecimento, num jogo de mesclas tipo ying-yang. Na vida, o ideal seria balancear a energia dos quatro naipes dos Arcanos Menores, dos vinte e dois caminhos dos Arcanos Maiores, aprender todas as suas lições e poder converter toda essa multiplicidade energética à unidade do número um. Eis o caminho da luz!

“Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.”

Lygia Fagundes Telles

O critério que usei para escolher qual personagem (ou qual situação) representa melhor a energia de cada carta foi o mesmo do estudo dos Arcanos Maiores: a que melhor identifica ou sintetiza a personagem ou a situação de um modo geral. Explico assim a energia de personagens e situações por um aspecto, aquele que mais chama a atenção no conjunto. Lembro, denovo, que tanto os personagens quanto as situações da obra de Lygia possuem uma tessitura extremamente desenvolvida e sua composição é uma mescla de várias energias que se alternam.

O NAIPE DE PAUS

Ás de Paus - Iniciação

As Cerejas. O naipe de Paus representa a energia do elemento fogo, do espírito e também da paixão. O Ás de Paus é representado por uma mão segurando uma varinha.

No conto As Cerejas, a narradora menina fica fascinada com o decote de Tia Olívia, que é ornado com um broche de cerejas. Ao presenciar, sem querer, um encontro sexual entre essa tia e um jovem parente que está na casa de passagem, a menina passa por uma velada iniciação.

As Cerejas é um conto com toques de erotismo e a lição dele (e da carta) é descobrir este fogo dentro de si e dar vazão a ele no momento propício.

Dois de Paus - Planejamento

As Formigas. O Dois de Paus possui a energia da premeditação e da organização. Geralmente esta carta é representada por uma jovem segurando duas varinhas diante de um terreno pronto para a semeadura. No conto As Formigas, duas jovens estudantes alugam um quarto na casa de uma velha esquisita e percebem que, à noite, formigas estão se organizando para montar o esqueleto de um anão. Diante disso, elas fogem apavoradas. A figura do anão é recorrente na obra de Lygia e representa a luta entre o lado espiritual e o lado carnal do ser humano. No caso deste esqueleto, as meninas intuem uma revelação para a qual elas ainda não estão preparadas. A lição da carta e do conto é a elaboração de projetos com cautela e sem fazer alarde, para que possíveis colaboradores não saiam correndo.

Três de Paus - Oportunidade

O homem ruivo e a gaiola aberta. O Três de Paus é a carta do ensejo e da ocasião. Sua energia é representada por um jovem à beira do oceano observando um navio. No conto História de Passarinho, um homem ruivo tem um passarinho de estimação que se debate até a exaustão para se libertar da gaiola. Um dia o homem esquece a porta aberta da gaiola e um gato come o passarinho. Neste fato, o homem vê seu desejo de liberdade do casamento e em sua vida. Ele vai embora e não volta. A lição deste conto e desta carta é que as gaiolas muitas vezes são imaginárias e a oportunidade de fazer o que desejamos está na realidade em nossas mãos.

Quatro de Paus - Realização

O jogo silencioso. Esta carta está ligada à realização, à prática e à organização. Sua representação energética é feita por dois parceiros dando as mãos. No conto Você não acha que esfriou? temos o encontro afetivo da personagem Kori com Armando (o homem que ama o seu marido Otávio) e a energia da realização se dá quando os personagens forjam um desejo inexistente, apenas no intuito de preencher um vazio. Os personagens são frios, mas o jogo é limpo, pois ninguém está enganando ninguém. A lição deste conto e desta carta é a concretização de um projeto, independente da realização pessoal.

Cinco de Paus - Competição

Mãe de Gina e Oriana. A energia desta carta é de combate e geralmente é representada por lutadores. No conto Uma Branca Sombra Pálida, o amor de Gina é disputado por sua mãe e por sua amiga até mesmo depois de sua morte. Este conto é narrado pela mãe de Gina e as alegorias do certo e errado que ela incita são muito claras: as flores brancas dela no jarro do lado direito e as flores vermelhas de Oriana no jarro do lado esquerdo. As flores brancas dela da cintura pra cima, no caixão da filha, e as flores vermelhas de Oriana da cintura pra baixo. Entretanto, esta personagem é tão suspeita quanto o Bentinho de Machado de Assis falando sobre a traição de Capitu no romance Dom Casmurro. Nem Gina e nem Oriana tiveram a palavra, assim como Capitu também não teve. Esta mãe, que disputava a filha viva e também depois de morta com Oriana, que espiava pelo buraco da fechadura, que experimentava o chão onde as meninas se deitavam, confessa que no dia que Oriana encontrar outra, esta será a sua maior traição. A lição do conto e da carta é que sejamos fortes porque a luta continuará sem trégua em toda e qualquer circunstância, deste lado e do outro.

Seis de Paus - Vitória

Era só um maço de cigarro. O Seis de Paus representa a energia do triunfo. Geralmente esta carta é representada por um jovem montado em um cavalo segurando seis varinhas que simbolizam a vitória. No conto A Testemunha, Miguel insiste que seu amigo Rolf lhe conte o que aconteceu entre eles na noite anterior. Rolf insiste que não aconteceu nada, mas Miguel, teimoso, quer saber. De maneira extremamente sutil, o diálogo sugere que talvez houvesse passado um encontro mais íntimo entre esses dois amigos. Por ser a única testemunha deste ocorrido não especificado, Miguel joga o amigo no rio e é surpreendido pelo guarda que presencia apenas o movimento final. Miguel triunfante diz que jogou apenas um maço de cigarro vazio e o guarda repreende: “Eu sei. Mas não pode. É a lei.” A lição do conto e da carta é que a vitória, justa ou não, pode ocorrer no momento e da forma mais inesperada.

Sete de Paus - Coragem

Lião. O Sete de Paus é a carta da valentia e do desembaraço. Esta energia é representada por um jovem caminhando por uma estrada tortuosa e decorada com sete varinhas. Lião, uma das três narradoras do romance As Meninas, é militante de esquerda na época da ditadura, sofre com a prisão do namorado e faz contraponto de realidade ao lado burguês de Lorena e aos desajustes de Ana Clara, suas amigas de pensionato e também narradoras da história. A lição desta carta e desta personagem é enfrentar todos os problemas de cabeça erguida.

Oito de Paus - Sinais

Objetos. A energia do Oito de Paus está voltada aos sinais, àquilo que devemos prestar atenção. Sua energia é representada por oito varetas arremessadas ao ar mandando sinais de comunicação. No conto Os Objetos, Miguel mostra a Lorena que todos os objetos só tem significado enquanto eles tem uma função, seja a memória das bolas de sabão da infância que um globo de vidro carrega, um peso de papel que apenas tem valor se estiver sobre papéis, ou um anjo que só importa se for tocado. Assim como os objetos, as pessoas só tem valor se forem amadas. A lição desta carta e deste conto é prestar atenção nos sinais e na importância de todas as coisas.

Nove de Paus - Disciplina

Dona Elzira. O Nove de Paus é a carta da instrução e da organização. Sua energia é representada por um jovem organizando nove varinhas. No conto Papoulas em Feltro Negro, Dona Elzira é a professora disciplinada que, usando um chapéu de papoulas, vai ao encontro de suas ex-alunas, muitos anos depois. Neste encontro a narradora descobre que Dona Elzira tinha uma visão totalmente distinta daquela menina que ela julgava ser e aquilo que aos olhos infantis parecia perseguição era, na realidade, proteção (esta narradora e Dona Elzira fazem uma ponte de relação com Virgínia e Frau Herta do romance Ciranda de Pedra.) A lição deste arcano e de Dona Elzira é manter a ordem acima de tudo.

Dez de Paus - Opressão

Tom. O Dez de Espadas é uma carta de peso que geralmente é representada por um homem carregando uma carga muito acima de sua capacidade. No conto A Chave, este peso é representado pela leveza da juventude de Magô, que pesa muito para o marido Tom, trinta e um anos mais velho que ela. Esse contraponto de juventude e velhice aparece das mais diversas formas na obra da autora e sempre de maneira áspera.

A leveza de Magô pesa para Tom, o calor do sangue da mulher lhe dá frio, os espelhos que refletem a beleza dela são os mesmos que refletem a degradação dele. O peso da situação é maior do que ele pode suportar e o conto caminha então para o lado onírico, fazendo Tom se lembrar de sua primeira esposa Francisca, voltando para ela e devolvendo-lhe a chave. De novo o controle da situação que é cômoda. Porém equilibrada.

Princesa/Pagem de Paus - Impulsividade

Raíza. A Princesa de Paus é uma jovem que parece um carneirinho, porém é imprudente e arrebatadora. A energia desta carta é representada por uma princesa segurando uma varinha. No romance Verão no Aquário, Raíza é a narradora impulsiva que durante um verão revê seus relacionamentos afetivos e analisa histórias de família que lhe são recontadas enquanto observa a amizade de sua mãe com um jovem padre que lhe atrai. Por causa desta atração Raíza força situações que resultam no premente encontro sexual dela com este padre e que culmina no suicídio dele. A lição deste romance e desta carta é domar o impulso para que as coisas possam ser vistas com clareza. Com o fim do verão e a morte deste jovem que tinha o olhar dourado, Raíza finalmente passa a enxergar a vida com os olhos abertos.

Cavaleiro de Paus - Impulsividade.

Emanuel. O Cavaleiro de Paus significa a cobiça, o desejo desmedido e a obstinação intensa. Sua energia é representada por um jovem montado num cavalo segurando uma varinha. No conto Emanuel, Alice está numa reunião de amigos e, em pensamento, confessa a si mesma o seu desejo pela beleza e pelo poder. Lá pelas tantas, ela tem uma “apoteose mental” ao contar ao grupo que ela arrumou um amante rico e lindo. Seu nome é Emanuel e esta é apenas uma transposição que ela faz de seu gato. Então, ao contar, ela mescla como encontrou o gato real na rua à fantasia de como leva o relacionamento com este amante rico. Terminamos com um amigo que vem correndo lhe dizer que Emanuel veio buscá-la na festa. Alice e Emanuel de Lygia fazem correspondência a Alice Liddell e o gato de Cheshire de Lewis Carroll. A lição desta carta e deste conto é domar a ganância para que ela não escureça a personalidade.

Rei de Paus - Dinamismo

A Metamorfose do Cachorro de Circo. O Rei de Paus está ligado à energia e à ação. Sua representação é feita por um rei sentado num trono segurando uma varinha. No conto Crachá nos Dentes, observamos o dinamismo e o vigor com que um cachorro de circo conta sua metamorfose: “Fui humano quando me apaixonei” e “Nem precisei ir ao espelho pra saber que tinha virado cachorro de novo”. Narrado com intensa vitalidade, este conto e esta carta ensinam o entusiasmo, a urgência, a rapidez de se passar de um estado de alma a outro, bem como a luta em domar o instinto animal. Este personagem faz contraponto com a personagem Tigrela no que diz respeito à transmutação que o amor oferece.

Rainha de Paus - Inspiração

Rosa Ambrósio. A Rainha de Paus está associada aos influxos, aos lampejos. Geralmente representada por uma mulher madura, segura de si, sentada em um trono e segurando uma varinha. Rosa Ambrósio é uma das vozes narrativas do romance As Horas Nuas, texto que conta sua história mesclando seus pensamentos à voz narrativa de seu gato Raul. Atriz em decadência, ela gosta de beber, acredita ser dependente de sua analista Ananta Medrado e possui uma relação com sua filha Cordélia muito parecida ao que vemos no conto Uma Branca Sombra Pálida, entre Gina e sua mãe, no que diz respeito à liberdade que o pai dava e que – segundo elas – conduziu a caminhos tortuosos que elas não conseguem endireitar. Rosa Ambrósio possui também ligações emocionais profundas com Ana Clara, a linda jovem do romance As Meninas e que, se tivesse sobrevivido, poderia ter virado a própria Rosa na maturidade. A lição de Rosa Ambrósio e da Rainha de Paus é a inspiração e a preservação da energia feminina em seu melhor estilo.

O NAIPE DE COPAS

Ás de Copas - Amor

Rosa. O Ás de Copas é representado por uma taça ou um coração. Sua energia está ligada ao amor mais que verdadeiro. Esta carta faz ponte com a carta dos Amantes e com o dois de copas.

No conto A Sauna, Rosa vende sua casa para o narrador poder ir viajar, faz um aborto para não comprometê-lo e acredita nas qualidades artísticas dele mais do que qualquer outro jamais acreditou. Porém, o narrador, fazendo concessões, uma atrás da outra, acaba rico, mas casa-se com Marina. Numa sauna alguns anos depois, ele reavalia seus erros, mas percebe que já é muito tarde para repará-los. A lição de Rosa e desta carta é o amor puro, aquele que quando se encontra, jamais se deve deixar escapar.

Dois de Copas - Romance

Gina e Oriana. A energia do Dois de Copas é de amor profundo e a representação desta carta é de um casal apaixonado. Gina e Oriana, no conto Uma Branca Sombra Pálida, são duas jovens de vinte anos que segundo o olhar da mãe de Gina, a voz narrativa da história, possuem uma relação íntima e muito intensa. Na história, a mãe de Gina interpela a filha de maneira preconceituosa e isso culmina no suicídio da garota. A lição do conto e da carta é a entrega profunda ao amor verdadeiro. Esta carta faz paralelo com a carta dos Amantes e com o Ás de copas.

Três de Copas - Celebração

Três Xícaras de Chá. O Três de Copas possui energia de celebração e a representação desta energia é através de três taças, que, aqui, são três xícaras de chá. No conto Um chá bem forte e três xícaras, Maria Camila e sua empregada estão preparando um chá para uma jovem convidada que se supõe ser a amante do marido de Maria Camila. Durante este preparo, Maria Camila intui também que o marido pode aparecer de surpresa. Esta celebração não é de felicidade e sim de constatação dos fatos apesar da impotência diante da situação. Aqui mais uma vez vemos o confronto entre jovens e idosos exposto de maneira brutal. A lição deste conto e desta carta neste contexto é a vitória que se celebra quando colocamos a vida e os relacionamentos em pratos limpos.

Quatro de Copas - Reavaliação

Anão de Jardim. O Quatro de Copas geralmente é representado por um jovem pensativo, curvado entre quatro taças e fazendo um balanceamento de sua vida. No conto Anão de Jardim, um anão de pedra faz uma reavaliação do jardim que vive e que está prestes a ser demolido. Nestas lembranças, ele recorda os donos da casa, analisa a sua situação de prisioneiro daquela pedra e metaforicamente fala em espiritualidade e transcendência. Mais uma imagem recorrente da obra de Lygia, este anão que aparece no romance Ciranda de Pedra, além de presente em outros contos, é o símbolo do homem preso em seu corpo e eternamente em conflito com a alma que quer ser livre. A lição do conto e da carta é, após a reavaliação, tentar ultrapassar os limites pessoais.

Cinco de Copas - Desapontamento

Helga. O Cinco de Copas é a carta das decepções, sua energia é representada por um jovem de cabeça baixa ao lado de cinco taças caídas no chão. No conto Helga, o personagem Paul Karsten narra suas façanhas na Alemanha nazista e seu envolvimento com Helga (a jovem sem uma perna) com quem ele se casa. Na noite de núpcias, ele rouba a perna ortopédica da esposa para vendê-la e ter o capital para fazer sua fortuna (e talvez seja esse mesmo brasileiro alemão, “Herr Paul”, que, no romance As Meninas, vai parar na Bahia e se une à mãe de Lião: “Quando o meu pai que é distraído à beça viu de perto o que era o nazismo, arrancou a farda e veio trotando por aí afora até Salvador. Difícil, dificílimo entender uma fuga dessas, não fosse o cinema.”). E Helga, a jovem que perde o marido e a perna ortopédica na noite de núpcias, é quem representa a energia deste arcano. A lição de Helga e desta carta é que a decepção faz parte da vida e, às vezes, ela é que fortalece e prepara a pessoa para futuros êxitos em outras circunstâncias.

Seis de Copas - Memória

Potyra. O Seis de Copas é uma carta de energia juvenil e geralmente é representada por crianças, seis taças e lembranças doces. No conto Potyra, o nosso narrador é uma espécie de vampiro que, através do contato com sangue estrangeiro, aprende línguas. Após enfrentar adversidades na Europa, decide migrar para o Brasil. Lá conhece Potyra, uma linda índia catequizada. Neste contexto o narrador se envolve com a tribo e aprende com o cacique a alimentar-se de outra maneira, substituindo aos poucos o sangue humano por sangue animal e, posteriormente, por seiva vegetal. Aprende sobre o respeito que tem este povo catequizado, tanto pela cultura que veio de fora quanto pela própria. Porém, o doce sonho desta nova maneira de viver se desfaz quando Potyra é assassinada por um dos colonizadores da terra e o narrador decide partir outra vez. A lição de Potyra e desta carta é a lembrança, é levar os nossos afetos para sempre em nossos corações. O que é realmente importante, jamais deve ser esquecido. “Potyra está me esperando no sol.”

Sete de Copas - Ilusão

A Pomba Enamorada. O Sete de Copas é a carta das quimeras, dos desejos impossíveis que em determinados momentos da vida confundem-se com a realidade. Esta carta geralmente vem representada por sete taças cheias de moedas, doces, louros de vitória e corações. No conto A Pomba Enamorada, claro está, desde o momento em que Antenor pede licença para fumar lá fora, que ele não está interessado na princesa do baile. Entretanto, a energia desta carta de ilusões faz com que quanto mais ele dê mostras de que não quer, mais ela se iluda de que o amor infinito, mas unilateral, pode vencer tudo. A lição desta carta é abrir os olhos e ler os sinais do início para que o final não seja um grande tombo. Mas como a esperança sempre é a última que morre, depois da queda ela se levanta e tenta outra vez.

Oito de Copas - Sacrifício

O Lagarto. O Oito de Copas é uma carta de sacrifício e de dificuldades. Geralmente representada por taças caídas, a energia desta carta parece o caminho de um escritor de cabeça baixa e calado, que vai abrindo com as mãos em garra o seu caminho. E transpirando… No conto Verde Lagarto Amarelo, Rodolfo é este escritor. Um personagem gordo, desconfortável, que transpira muito, sem estabilidade na carreira e que faz o sacrifício de tentar conviver com Eduardo, o irmão lindo, bem-sucedido, bem-casado, que é elegante até para dobrar a manga da camisa na medida exata. Uma carta de energia muito difícil, traz como lição o fortalecimento através das dificuldades. E a força de Rodolfo está neste irmão que faz tudo melhor do que ele e que ele tenta evitar. Porém, essa tentativa mais atrai Eduardo, que ama o irmão profundamente e faz questão de estar sempre se fazendo presente. A dor desta convivência fortalece Rodolfo sem que ele perceba.

Nove de Copas - Preenchimento

O Noivo. O Nove de Copas é uma carta que possui energia leve, tranquila e de felicidade representada por nove taças. No conto O Noivo, observamos esta energia fluindo de maneira graciosa quando o noivo acorda no dia do casamento sem lembrar da noiva. Como num jogo de detetive, ele vai imaginando primeiro quem irá se casar. Depois de constatar que o noivo é ele próprio, vai imaginando, entre todas as mulheres que passaram por sua vida, qual delas seria a noiva. Enquanto isso, o melhor amigo vai dirigindo o carro para a igreja sem lhe dar nenhuma pista. O vácuo da memória é preenchido quando ele levanta o véu. E justamente nesta, ele não tinha pensado! A lição do conto e da carta é o preenchimento das lacunas da vida para que possamos estar de posse do todo.

Dez de Copas - Sucesso

Natércio e suas três filhas. O Dez de Copas é a carta dos resultados positivos e esta energia é representada pela reunião de uma família ditosa. No romance Ciranda de Pedra, Natércio (o ex-marido de Laura) representa esta energia opondo-se a Laura e Daniel (o amante). Pois, apesar do grande amor de Laura e Daniel, ambos acabam sendo tão patéticos quanto Anna e Vronsky de Leon Tolstoy. Enquanto Karenin (o marido de Anna) fica com a guarda de Serezha, o filho que teve com Anna, da pequena Anna a filha do Conde Vronsky com sua esposa, fica ambém com o respeito da sociedade e com o dinheiro. Nada sobra ao casal adúltero Anna e Vronsky, exatamente como acontece a Laura e Daniel. Em Ciranda de Pedra, Natércio – como no caso de Karenin de Tolstoy - fica com as três filhas, com o respeito da sociedade e com o dinheiro. E ainda que com Virgínia (a filha de Daniel) o relacionamento de Natércio seja mais formal, a garota o respeita, pois ele é o pai provedor que a assume e a acolhe. A lição de Natércio e desta carta é mostrar o quanto o êxito familiar atua como alicerce de toda uma vida.

Pajem/Pricesa de Copas - Carinho

As folhas. Esta carta representa o carinho juvenil de uma donzela. Ligada à energia feminina da juventude, esta carta nos traz uma jovem que é dócil, linda e que não mede esforços, arriscando pés e mãos por entre os espinhos, para extravasar seus sentimentos de carinho. No conto Herbarium, a energia desta cartaestá representada na figura da jovem devota que recolhe folhas para a coleção do primo botânico, convalescente de uma doença. A lição que nos dão o conto e a carta é o desabrochar da juventude e de seus anseios. Da menina que quer parecer mulher aos olhos deste primo, mas que ainda não está preparada para isto. Ainda que a juventude passe tão rápido, esta jovem é determinada e quer crescer rápido e esse desejo, em parte, já é amadurecimento.

Cavaleiro de Copas - Charme

Marcelo. O Cavaleiro de Copas é um jovem encantador. Esta energia geralmente é representada por um rapaz montado num cavalo. No conto As Cerejas, Marcelo é o jovem parente que se hospeda na casa da madrinha da narradora da história e fascina tanto a narradora menina quanto a Tia Olívia. Porém, é com a Tia Olívia que ele acaba tendo um encontro amoroso que a narradora presencia sem querer. A lição do conto e da personagem é a sedução e o erotismo que fazem parte da vida.

Rei de Copas - Consideração

Eduardo. O Rei de Copas é uma figura generosa e paciente. Geralmente é representado por um rei sentado em um trono segurando uma taça. No conto A Ceia, Alice e Eduardo marcam um último encontro. A relação desfeita é descrita através do cenário triste e degradante de um restaurante vazio e escuro. Com dureza e rispidez, de novo Lygia trata da relação entre jovens e idosos. Eduardo, o jovem que rompeu com Alice, a velha, está tranquilo com a situação, enquanto ela sofre com a separação. Generoso, ele tenta mediar a situação sem sucesso. Depois que ele se vai, o golpe mortal vem do garçom que diz a ela: “Também discuto às vezes com a minha velha, mas depois fico chateado à beça. Mãe tem sempre razão.” A lição do Rei de Copas e deste conto é a consideração tanto de Eduardo quanto do garçom, embora neste caso ela seja ainda mais dolorosa do que o desprezo.

Rainha de Copas - Empatia

Otávia. A Rainha de Copas simboliza a beleza, a empatia e a sedução. Ela é a “Afrodite do Tarot”. Geralmente é representada por uma mulher linda sentada em um trono segurando uma taça. No romance Ciranda de Pedra, Otávia é meia-irmã da protagonista Virgínia que, desde a infância, atraiu para si todas as atenções (em especial de Frau Herta, a governanta da casa do pai, e também de Conrado, fato que amargou a infância inteira de Virgínia). Otávia cresce e vira pintora. Na verdade ela não era tudo aquilo que Virgínia acreditava, mas se transforma numa jovem fiel aos seus valores e às suas verdades pessoais, independentemente do que ditava a sociedade. A lição de Otávia e da Rainha de Copas é o deleite e tentar aproveitar ao máximo o que de melhor a vida tem para oferecer.

O NAIPE DE OUROS

Ás de Ouros - Recompensa

A medalha. O Ás de Ouros é a carta da compensação e da gratificação. Geralmente é representada por uma moeda, uma medalha dourada. No conto A Medalha, na noite anterior ao seu casamento, Adriana chega tarde em casa e é surpreendida por sua mãe que a chama de anã de pescoço curto, que enxovalha a família de seu pai e diz que tem pena do noivo com quem ela irá se casar. Depois, presenteia a filha com uma medalha que foi de sua avó dizendo que espera que a medalha não enegreça em seu pescoço. Como recompensa a essas palavras, Adriana amarra a medalha no pescoço do gato para mostrar à mãe que palavras cortantes também tem o poder de cortar os laços familiares. A lição da medalha e da moeda é a lei do retorno, seja ele positivo ou não. Tudo que vai, volta.

Dois de Ouros - Mudança

Uma noite a Fernanda virou um cartão-postal. O Dois de Ouros é a carta da metamorfose, da transmutação. Sua energia é representa por duas moedas de pesos diferentes que, em algum momento, trarão desequilíbrio a uma situação. No conto Eu Era Mudo e Só, o narrador Manuel é casado com a espetacular Fernanda, uma mulher primorosa em todos os sentidos. Ao longo de doze anos, Manuel vai se “apoltronando” neste casamento e se deixando conduzir, a ponto de perder até mesmo o prazer de ter um pensamento autônomo, pois a mulher antecipadamente a tudo compreendia e adivinhava. No decorrer da trama, Manuel toma as rédeas de seus pensamentos, se imagina num navio indo embora pra bem longe e levando a esposa no bolso, na forma de um cartão-postal que pode ser rasgado e atirado ao mar, pois nada é tão livre como o vento do mar! A lição deste conto e desta carta é o poder transformador que possuímos. Para dar um passo adiante e se desvencilhar de uma situação indesejada, é só uma questão de se mexer.

Três de Ouros - Parceria

Aninha. O Três de Ouros é a carta da sociedade representada por três moedas douradas. No conto Tigrela, Aninha é a empregada, velha e feia, que Tigrela, a tigresa que vive com Romana, aceita para trabalhar no apartamento. A tigresa permitia, inclusive, que Aninha lhe aparasse as unhas. Tigrela e Aninha guardavam uma certa distância, mas se respeitavam. Romana é a dona da casa e a narradora da história e mantém com a empregada uma relação de parceria no que diz respeito à tigresa, ainda que tivesse tido um pouquinho de trabalho para convencer Aninha de que Tigrela era apenas um tigre desenvolvido. Aninha sabia exatamente tudo que se passava na casa, mas a ela não foi dada a voz narrativa para nos contar. Assim, neste lindo apartamento branco, estilo mediterrâneo, Tigrela, Romana e Aninha são as três moedas douradas e a lição aqui é dar as mãos. União acima de tudo. E silêncio quando necessário.

Quatro de Ouros - Possessividade

Luisiana. O Quatro de Ouros tem energia de absolutismo e geralmente representa alguém que quer ser o centro das atenções e que está escondendo muitos tesouros sem querer dividi-los. Luisiana, no conto Apenas Um Saxofone, é uma mulher de meia idade que gosta de beber e que juntou muito dinheiro. Seu desejo de querer comprar tudo dá a impressão de que, se Ana Clara do romance As Meninas tivesse alcançado a idade madura e enriquecido, seria a própria Luisiana em outro corpo. Esse desejo de posse, entretanto, não supre em Luisiana o mais importante, que era a companhia de Xenofonte, o amante saxofonista que vivia com ela num quartinho com tapete de juta e gravuras de Fra Angélico. A lição deste conto e desta carta é não deixar que se vá, em meio ao deslumbramento, o que nos é mais caro e não deixar que os bens materiais sejam mais importantes que nossa alma.

Cinco de Ouros - Ansiedade

Tatisa. O Cinco de Ouros é uma carta que possui uma energia difícil. Geralmente é representada por figuras tentando realizar algo ansiosamente, mas também enfrentando muita dificuldade. Antes do Baile Verde, é um conto que possui esta energia de dificuldade e ansiedade. Tatisa está com a empregada em seu quarto, atrasada para o Baile Verde, com a fantasia de lantejoulas pela metade por terminar, porejando de suor e com o pai morrendo no quarto ao lado. A condição aqui é atravessar rapidamente esta morte e a ansiedade de sair correndo para não presenciar o fato, como se isso amenizasse a situação. Aqui faço um paralelo com o conto Nada de Novo na Frente Ocidental, pois enquanto Tatisa, no Baile Verde, quer avançar o tempo para não presenciar a morte de seu pai, a narradora do outro conto quer atrasar o tempo para não vivenciar a mesma situação. Enquanto uma quer esticar o tempo para a frente e a outra quer puxá-lo para trás, a lição aqui é a coragem e saber enfrentar de cabeça erguida aquelas situações das quais não há como escapar. Se a gente corre, as lantejoulas da fantasia correm atrás.

Seis de Ouros - Generosidade

Cordélia. A energia do Seis de Ouros é representada por um nobre dando esmolas a um pobre. Cordélia é a filha mais jovem que, na peça Rei Lear de William Shakespeare, recusa-se a vender elogios ao seu pai porque seus sentimentos profundos e verdadeiros por ele valiam mais do que as terras que ela herdaria em troca de suas adulações. Cordélia de Lygia, no romance As Horas Nuas, faz paralelo tanto à Cordélia de Shakespeare quanto à proposta do seis de ouros. Numa obra em que a sede da mocidade faz o mais velho sempre sugar o mais novo na ânsia de alguns anos de seiva, como Lygia expressa no romance Verão no Aquário, numa obra em que os velhos e os jovens se estranham, competem e se afrontam de maneira cruel, Cordélia é a personagem que dá esmolas. Ela é nobre, jovem e generosa e gosta da companhia dos velhos. O toque de aspereza neste caso é dado por Rosa Ambrósio, a mãe de Cordélia que narra a história e abomina o envolvimento da filha com esses velhos. A generosidade é a lição desta personagem e desta carta. E, levando em consideração a obra inteira da autora, esse compartilhar da mocidade é um ato supremo de bondade. Cordélia, tanto a de Shakespeare quanto a de Lygia, é “personagem-coração” - como seu próprio nome sugere.

Sete de Ouros - Frustração

Gaby. A energia do Sete de Ouros é de frustração. Esta carta é representada por um agricultor diante de uma colheita mal sucedida. No conto Gaby, Gabriel é um jovem pintor que vive à custa de uma senhora idosa. Com a mesma aridez de um solo impróprio para o plantio, Gabriel se esquiva o tempo todo da companhia desta velha e nunca consegue terminar nenhum dos quadros que começa a pintar, sempre sobre o mesmo tema: natureza-morta. Em sua alma de agreste, misturam-se lembranças do lar desestruturado de seus pais, da importância que teve a sua babá, da jovem que eventualmente um dia ele amou e dos desejos de derreter com ácido a sua velha patrocinadora. Caberia numa caixinha de fósforos mas ficaria o rombo na banheira, fazer o que? A lição deste arcano e deste conto é de ponto morto: a pausa e o recuo que em certos momentos são fundamentais para que a alma e o solo possam ser fertilizados e encontrem uma nova direção.

Oito de Ouros - Construção

Vera e Kalina. O oito de ouros possui energia de elaboração e edificação. Esta energia é representada por um grupo construindo uma fortaleza. No conto Negra Jogada Amarela, Vera é a menina frágil com quem Kalina brinca de amarelinha. Na idade adulta Vera percebe que as regras daquele jogo servem também para os jogos afetivos. Observa-se então que a sagacidade para conseguir se virar na vida é construída a partir das normas de um jogo infantil. A lição do conto e da carta é observar que, para não ruírem, os projetos devem ser elaborados desde a base.

Nove de Ouros - Abundância

O círculo social e o círculo dos perguntadores. Com energia de opulência e fatura, o Nove de Ouros geralmente é representado por um burguês contando suas moedas. No conto A Chave, a autora menciona um círculo social que deveria haver no inferno, um bando de engravatados condenados a dizer e ouvir besteiras por toda a eternidade. No conto A Sauna, ela menciona um outro círculo que também deveria existir no inferno. O círculo dos perguntadores. “Seu nome? Sua idade? Massagem ou ducha? Fogueira ou forca?” Um sistema de entrevistas. Perguntas. Esta abundância de futilidade mencionada nos dois contos nos mostra que tudo que é demais e superficial enjoa. Esta é a lição deste arcano e destes dois profusos grupos sociais.

Dez de Ouros - Proteção

O fio dental. A energia do Dez de Ouros está associada à ajuda, ao amparo, ao apoio, e esta carta é representada por dez moedas de ouro. No conto Noturno Amarelo, presenciamos Laurinha e Fernando com o carro parado à noite, sem gasolina. Enquanto ele repõe a gasolina, ela faz um balanço de sua vida e do erro de cálculo ao ter trocado Rodrigo, seu grande amor, por Fernando, o atual companheiro. A falsa ideia de segurança neste contexto é representada pela imagem de um fio dental. “Se ao menos ele não fizesse aquela voz para perguntar se por acaso alguém tinha levado a sua caneta. Se por acaso alguém tinha pensado em comprar um novo fio dental, este estava no fim. Não está, respondi, é que ele se enredou lá dentro, se a gente tirar esta plaqueta (tentei levantar a plaqueta) a gente vê que o rolo está inteiro mas enredado e quando o fio se enreda desse jeito, nunca mais!, melhor jogar fora e começar outro rolo. Não joguei. Anos e anos tentando desenredar o fio impossível, medo da solidão? Medo de me encontrar quando tão ardentemente me buscava?” A lição da carta e do conto é que a segurança e a proteção que buscamos nos outros, devemos encontrar em nós mesmos, porque esta é a única que é verdadeira.

Pajem/Princesa de Ouros - Praticidade

Lorena. A princesa de ouro é uma jovem prática. Esta é a Lorena, uma das três narradoras do romance As Meninas. Pertencente a uma família tradicional, esta jovem tem gosto artístico apurado, ama secretamente um homem casado, mas permanece virgem. O extremo de sua praticidade ocorre no momento em que decide, junto com Lião, a melhor maneira de dar fim ao corpo de Ana Clara, para não envolver num escândalo nem a elas, nem às freiras do pensionato onde vivem. A lição da carta e da personagem é a economia, a acepção e a maturidade infantil de se livrar rápido dos problemas.

Cavaleiro de Ouros - Confiança

O velho cão na esquina. O Cavaleiro de Ouros é o símbolo da entrega e sua energia é representada por um jovem montado num cavalo segurando uma moeda de ouro. Num dos fragmentos do livro A Disciplina do Amor, um jovem vai para a guerra e não retorna. Sua noiva casa-se com outro e todos o esquecem. Porém, o cão fiel confia que um dia o dono retornará e todos os dias à mesma hora para na esquina para esperá-lo. A lição deste fragmento e desta carta é a esperança e a credibilidade.

Rei de Ouros - Eficiência

Xenofonte. O Rei de Ouros é um empreendedor que toma medidas eficazes. Sua figura é representada por um homem maduro sentado em um trono e segurando uma moeda de ouro. Xenofonte, no conto Apenas um Saxofone, carrega as características do Rei de Ouros. Eficiente ao extremo em realizar todos os desejos de Luisiana, sua capacidade de produzir grandes efeitos atinge o ápice quando ela, por não saber lidar com um amor assim tão devoto, pede a ele que se mate. Nunca mais Luisiana tem notícias e se Xenofonte se matou ou não fica em aberto. A lição desta carta e deste conto é estabelecer limites, pois a eficiência levada ao extremo acaba sendo ineficiente e insatisfatória.

Rainha de Ouros - Boa Sorte

O silêncio e a voz de Capitu. À Capitu não foi dada voz, mas, mesmo assim, ela conquistou seu espaço e superou o seu criador, Machado de Assis. Lygia na juventude: “Não traiu.” Lygia na maturidade: “Traiu.” Lygia na idade da razão: “Agora não sei.” Em Capitu, roteiro escrito em parceria com Paulo Emílio Sales Gomes, Lygia deu plástica e movimento a esta personagem e, a partir daí, Capitu também passou a ser sua. Pitágoras, que foi um grande gênio da matemática e também um grande místico, dizia que a unidade está na multiplicidade e vice-versa. No centro de sua ciência, Pitágoras dizia que todas as relações poderiam ser reduzidas a associações numéricas e que todas as coisas eram de fato números. Para ele, o número um é o número da unidade absoluta, do imutável que deu origem a todos os outros números. “Um” é o símbolo da mente universal e da sabedoria. O número dois representa a dualidade e a polaridade, é o estado da tensão primordial. Num conceito metafísico de opostos irreconciliáveis, o número dois evoca o conceito do bem e do mal, da luz e da escuridão, do princípio e do fim e de todos os outros opostos. Opostos que são distintos, mas que se atraem. Porque eles são a mesma energia em graus inversos, apenas as suas direções são contrárias. Deste modo, a dualidade também é uma representação da unidade. E as metades opostas, a energia da culpa e da inocência, juntas, é que formam a unidade da personagem Capitu. Ao dizermos “traiu” ou “não traiu” perdemos a personagem, porque a energia para formar a sua completude está exatamente nessa duplicidade da dúvida e da certeza. Lygia entendeu isso e portanto a energia do sim e do não são mescladas neste roteiro brilhante. A Rainha de Ouros está associada à boa sorte, ao mundo físico e às conquistas materiais. Esta é a Capitu de Lygia, a personagem machadiana que conquistou, que transcendeu, que passou a pertencer a todos e que abarca no “uno” tanto os opostos quanto a multiplicidade energética.

O NAIPE DE ESPADAS

Ás de Espadas - Triunfo

O Tempo, a ampulheta quebrada. A energia do Ás de Espadas está associada ao êxito e à vitória. Sua representação é feita através de uma mão segurando uma grande espada no ar. Associo esta energia à ampulheta quebrada que Lião menciona em As Meninas, pouco antes de Lorena lhe dar a notícia de que Ana Clara morreu. Esta ampulheta associo ao tempo e ao tema da velhice que é extremamente recorrente na obra de Lygia. Rosa Ambrósio, no romance As Horas Nuas, diz que é preciso saber se despedir. A mãe de Lorena, em As Meninas, usa creme de tartaruga porque elas se conservam séculos. Etodos os contos que abordam este tema mostram que o tempo triunfa afinal. É como Cronos, na Mitologia Grega, devorando os filhos. Não há como fugir do envelhecer. Uma vez que este é o fim de todos e que a existência humana é tão passageira, o triunfo do Ás de Espadas está em viver da melhor maneira possível, para que, quando a ampulheta se quebrar, possa pairar no ar a energia de que nada foi em vão e de que tudo valeu a pena.

Dois de Espadas - Equilíbrio

Conceição e Menezes. A energia do Dois de Espadas está voltada para a ponderação, a calma e a prudência. Geralmente esta energia é representada por uma jovem segurando duas espadas de mesmo peso, uma em cada mão. No conto A Missa do Galo, Lygia recria a atmosfera do conto originalmente escrito por Machado de Assis. Conceição e Menezes são casados, porém ele a trai com uma escrava com tranquilidade de “direitos masculinos” e sem peso na consciência. O equilíbrio deste casamento entra em ponto de tensão quando Conceição passa a noite de Natal conversando na sala com um jovem visitante. Através de uma narrativa cheia de sugestões, nem Lygia e nem Machado deixam claro o que de fato passou entre Conceição e o jovem, mas, na versão de Lygia, a almofada amanhece amassada. A lição do conto e da carta é que as espadas têm o mesmo peso e, portanto, ainda que entrem em estado de tensão, é conveniente que o equilíbrio seja mantido.

Três de Espadas - Tristeza

A música do saxofone. O Três de Espadas está associado à dor e à tristeza. Geralmente esta energia é representada por um coração atravessado com três espadas. No conto O Moço do Saxofone, acompanhamos um motorista de caminhão que se hospeda numa pensão de artistas lotada de anões louros com o cabelo repartido de lado – anões artistas. Além do tema recorrente do anão e do saxofone aparecer também nas mãos do personagem Xenofonte no conto Apenas Um Saxofone, este motorista ouve, na pensão, um jovem tocando o saxofone mais triste que ele jamais ouviu na vida. Este jovem tem uma mulher que o trai e ele exprime sua tristeza tocando. A lição do conto e da carta é que o desalento é parte da vida, mas devemos extravasá-lo de maneira sublime.

Quatro de Espadas - Isolamento

Que se chama solidão. O quatro de espadas é uma carta de isolamento e introspecção. Sua representação geralmente é na figura de uma pessoa dormindo ou meditando. Que se chama solidão é um conto que aparece no livro Invenção e Memória e que, ao lado de outros livros, como Durante aquele estranho chá, Conspiração de Nuvens e Passaporte para a China, fazem parte de uma coleção de histórias que, como a autora mesma diz, parte é memória do que ela viveu e parte é invenção. Desta sui generis autobiografia dividida em livros distintos, um pouco é o que se passou, outro pouco é o que ela acha que deveria ter acontecido, outro pouco é o que ela se lembra e outro tanto o que ela gostaria que tivesse sido. Nossa lição aqui é meditar para que a luz interior possa ser acendida e para que a compreensão de todos esses mistérios da vida estejam ao nosso alcance. Neste conto, Que se chama solidão, as empregadas, os familiares e os animais do sítio vão girando ao redor da autora menina como numa ciranda: “Nesta rua, nesta rua tem um bosque, que se chama que se chama solidão…” Ela olha o mundo ao seu redor, mas de maneira introspectiva – como buda meditando no quatro de espadas – e provavelmente já preparando o estofo para futuramente escrever Ciranda de Pedra.

Cinco de Espadas - Derrota

Bruna. O Cinco de Espadas é a carta do revés da fortuna, dos destroços e de tudo aquilo que não deu certo. Geralmente é representado por um lutador com cinco espadas caídas. No romance Ciranda de Pedra, Bruna é meia-irmã da protagonista Virgínia. Durante a infância das meninas, ela é quem mais critica a mãe, Laura, por ter um amante e por ter “destruído” a família. Anos depois, Bruna vive um casamento funesto e também arruma um amante. E esta derrota afetiva de Bruna é o que a faz reavaliar a postura de sua mãe. A lição de Bruna e desta carta é que os insucessos da vida estão presentes no caminho de todos. Quando o outro se encontra na energia de derrota desta carta, não devemos criticá-lo. O próximo a sofrer com esta energia pode ser este crítico.

Seis de Espadas - Passagem

A Barca. O Seis de Espadas é uma carta de passagem suave depois da derrota do arcano anterior Esta carta é representada por uma barca sobre as águas. No conto Natal na Barca, além da referência de travessia, que está diretamente ligada à energia da carta do Seis de Espadas, a autora faz outras inúmeras referências místicas, inclusive à ressurreição de Cristo na figura do bebê que aparentemente estava morto, mas que acorda no fim da viagem. Este conto e esta carta nos dão lições de fé e esperança, pois, ainda que uma situação seja momentaneamente desfavorável, ela possui um lado bom que num momento complicado ou de dificuldade dificilmente conseguiremos enxergar. À noite o rio é frio, mas de manhã ele é verde e quente.

Sete de Espadas - Oposição

Um Coração Ardente. O Sete de Espadas possui energia de contrastes. Esta carta geralmente é representada por um jovem protegendo-se de sete espadas que, do alto, estão apontadas em sua direção. No conto Um coração Ardente o jovem narrador busca o seu paraíso perdido na literatura, nas reuniões de partido, viajando para dentro e para fora de si até encontrar Alexandra em uma casa de prostituição e tentar resgatá-la oferecendo-lhe uma vida melhor. A jovem não consegue adaptar-se e volta para o prostíbulo. Quando vai atrás dela, o narrador fica sabendo sobre o suicídio da jovem Dedê, que vivia no quarto ao lado de Alexandra e que esperava justamente encontrar alguém que a cuidasse e lhe oferecesse uma oportunidade de vida melhor. O contraste destas duas jovens é a representação da energia deste arcano na vida do narrador. A lição deste conto e desta carta é a defesa e a retensão das forças restantes no momento em que não é possível seguir adiante.

Oito de Espadas - Indecisão

O galo branco. O Oito de Espadas é a carta do vacilo, da hesitação. Sua energia é representada por uma jovem oprimida por oito espadas, sem poder se mover. No conto Suicídio na Granja, um cozinheiro escolhe um ganso para ser preparado para o jantar. Com o seu desaparecimento, o seu amigo galo fica deprimidíssimo com “os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca” e como o amigo não volta o galo vai “definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado” até morrer ao lado do tanque onde o amigo se banhava. A lição do conto e da carta é mostrar o quanto o titubeio, a falta de rumo e o desespero pelo apoio alheio podem ser prejudiciais.

Nove de Espadas - Pesadelo

Os fantasmas somos nós. O Nove de Espadas é uma carta que possui uma energia áspera e fatigante. Geralmente é representada por alguém em uma cama em meio a um sono turbulento. No conto A Presença um jovem robusto resolve se hospedar num hotel de velhos. Ao ser advertido pelo porteiro que aquela juventude toda afrontaria os velhos e que “algo raro” poderia acontecer em função disso, o jovem sorri e diz que sempre na vida quis se hospedar num hotel mal-assombrado. O nove de espadas é a carta do pesadelo dos velhos que se deparam com a juventude que perderam e o terror que traz a tona todos os fantasmas que ninguém quer ver. A lição aqui é o respeito de dar um passo para trás ou pagar o preço no amargor de uma goiabada com queijo ou num chá envenenado.

Dez de Espadas - Ruina

Biruta. O Dez de Espadas é a carta do aniquilamento. Geralmente esta energia é representada por um ser tombado ao solo com dez espadas atravessadas em seu corpo. No conto Biruta, um dos mais tristes que a autora escreveu, Alonso é um garotinho pobre, trabalhador, que toma conta deste pequeno cachorrinho, ainda filhote, chamado Biruta. Alonso ama muito o filhote e tenta ensiná-lo a não perturbar os donos da casa. Entretanto Biruta, por ser filhote, estraga muitas coisas, o que deixa os donos da casa muito insatisfeitos, ainda que Alonso muitas vezes queira ele próprio pagar pelos erros do cachorrinho. Na noite de Natal dizem ao garoto que levarão Biruta a uma festa e Alonso, na inocência infantil, entrega o cachorro. Após a saída dos donos da casa, a empregada conta ao garoto que Biruta não voltará. O dez de espadas é a marca da perda irreparável para quem ficou, da dor que não tem saída. Após uma grande perda, não há o que conforte, apenas o tempo pode abrir novas perspectivas. A lição desta carta é que tudo na vida tem um fim. Mas após este fim, também pode haver um recomeço.

Pajem/Princesa de Espadas - Ideias

Ducha. é uma garota de imaginação fértil e é representada por uma jovem segurando uma espada. Ducha é a narradora menina do conto O Jardim Selvagem. Neste conto nos é apresentado o relacionamento de Ed com Tia Daniela (que é comparada, pelo marido, a um jardim selvagem). Tia Daniela usa uma luva estranha numa das mãos para esconder um defeito e quando o cachorro, Kleber, fica doente, ela o mata com um tiro. Algum tempo depois, Ed fica doente e posteriormente ele se mata com um tiro. Então, Ducha imagina Tia Daniela no velório com uma luva preta. A Princesa de Espadas é criativa e neste contexto está representada por uma menina que, contando o caso do cachorro, faz uma analogia com a possibilidade de Tia Daniela ter matado o marido ou tê-lo induzido ao suicídio. Como não é dada voz à Daniela para contar a sua versão dos fatos, estamos diante de mais uma narradora/personagem suspeita, uma Princesa de Espadas que pode estar sendo fiel aos fatos, mas que também pode estar usando a sua extrema criatividade para narrar. A lição de Ducha e desta carta é ser original e deixar a mente fluir.

Cavaleiro de Espadas - Ingenuidade

O Menino. O Cavaleiro de Espadas representa um jovem de bom coração, porém muito infantil e pueril. A energia desta carta é representada por um jovem montado em um cavalo segurando uma espada. No conto O Menino, um garotinho acompanha sua mãe ao cinema e não entende o que se passa quando a mãe, em vez de lhe dar atenção, concentra-se no homem sentado ao lado. De volta ao lar, o menino vai ao encontro de seu pai e repara que ele tem o rosto feio e bom. As lágrimas do menino, ao abraçar o pai, mostram que o coração do menino leu os sinais, porém sua mente ainda é muito jovem para decodificá-los. A lição desta carta e deste conto é a ingenuidade e o sentimento puro da primavera da vida que devem ser conservados ao longo de todo o caminho, apesar das decepções.

Rei de Espadas - Intelecto

Ricardo. O Rei de Espadas tem a energia da estratégia. Geralmente esta carta é representada por um rei sentado num trono, segurando uma espada. Ricardo, no conto Venha Ver o Pôr do sol, é um jovem pobre, que perdeu a namorada para um ricaço. Muito provavelmente ele já deixou de amá-la, mas se sente prostrado e quer vingar-se. Assim, com muita tática e envolvimento, consegue marcar o último encontro com Raquel para ver um pôr do sol e concluir a sua vingança. A lição desta carta e deste conto é a estratégia, o tato e a capacidade que se deve ter para enxergar a armadilha nas entrelinhas de uma história envolvente e bem comportadinha. O Rei de Espadas é um jogador de xadrez que nunca joga para perder.

Rainha de Espadas - Independência

Madame Telezê. O naipe de Espadas representa a energia do ar e do intelecto. No Tarot de Shakespeare este naipe é representado pela pena do escritor. Há também quem já tenha representado este naipe por uma caneta. Deste modo, a Rainha de Espadas eu associo à grande rainha da literatura brasileira. No livro Passaporte para a China, que Lygia classifica como “Crônicas de Viagem”, ela narra sua viagem à China, acompanhando setenta e duas delegações do mundo todo convidadas para celebrar o décimo primeiro aniversário da República Popular da Nova China. O guia que lá a recebe, Mister Hom Tim-Tim, carinhosamente a chama de Madame Telezê, carregando o sotaque mas querendo dizer Madame Telles. Até o presente momento este é o último livro publicado pela autora narrando sua impressão sobre o Oriente através da fantasia, da memória, da realidade e da invenção. A lição desta carta e desta escritora é observar o mundo através da arte, é se iluminar através da dor e da alegria desses seres notáveis, desses maravilhosos personagens que ela criou para nós. Segui-los pelo lado de fora, nas páginas de um livro, e ao mesmo tempo deixar que eles invadam nossos corações para sempre. Dos melhores escritores que temos, Lygia está entre eles. De todos os personagens criados na literatura brasileira, os personagens desta Grande Dama estão entre os mais profundos e diversificados. E diante desta voz edificante, “o resto é shakesperiano silêncio” *.

* “O resto é shakesperiano silêncio” é uma expressão usada por Lygia – adaptada de O resto é silêncio da peça Hamlet de William Shakespeare – na página 57 do livro Passaporte para a China.

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